Dia 50/52

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O barulhinho dele entrando bem devagar pelo quarto, subindo no pé da nossa cama, e se esticando até alcançar pelo menos a pontinha do meu travesseiro tem aparecido cedo, muito cedo. É o calor. Por mais pelado que esteja, por mais que a gente deixe um ventinho nas pernas dele, antes, bem antes das 7h, o pequetito dá as caras, olhos inchados, cabelo todo bagunçado, e se tem uma coisa boa nisso é o tempo de dengo de que passamos a desfrutar antes do "despertador dos adultos" tocar, antes de eu me sentir obrigada a pular da cama e começar a trabalhar na longa lista de afazeres matinais. São alguns minutos de sofrência até conseguir abrir os olhos com firmeza, claro, mas depois disso é tanto cafuné, tanto "mamãe", tanto "papai", tanta doçura, que a gente se esquece de reclamar da temperatura, pelos menos por um instante ou dois. Hoje ainda tentou pegar no sono de novo, com a mão segurando a minha, mas rolou de um lado pro outro, acarinhou o pai, acarinhou a mim, e depois a própria barriga, até que desistiu. Retribuiu a todos os muitos beijos que demos, disse o que ele identifica como sendo "coisas de amor", e depois me pediu pra ver a lista, "a minha lista, mamãe", se referindo à relação dos colegas que vão dividir com ele a iminente aventura do 1º período. Fui lendo Bernardo, Cecília, Davi, Emanuelle, um monte de gente que ele ainda não conhece, e ele nem se preocupa, avisou antes que eu perguntasse: "vou ficar muito amigo de todos". Depois sorriu quando escutou os nomes dos colegas do ano passado, não são muitos, o suficiente pra ele se sentir em casa, pra fazer ficar mais leve a novidade que ele não vê a hora de começar. Rimos em torno disso, fizemos planos, o corredor novo, o segundo andar, a sala grandona, e ele adorou saber, até que a fome apareceu e ele quis lanchar. Chegou a hora em que me sinto obrigada a levantar, e o calor já é intenso logo cedo, mas aí eu já estou lotada de beijos, e já tenho amor combustível pro dia todo… 

Dia 49/52

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Foi logo nos primeiros minutos do dia que notaram o calendário pendurado na parede da cozinha, foto nova, semanas inteiras pela frente. "Por que você virou? Já é fevereiro, mãe?" Eu confirmei, e eles se animaram, disseram alguma coisa como "ebaaaa, já é fevereiro", e eu mal reagi. O que me provoca alguma angústia os enche de alegria, e então só me resta observar. Continuaram animados porque janeiro se foi, porque hoje é fevereiro, e eu já ia imaginando que talvez os últimos 31 dias não tenham agradado tanto quanto eu desejei, quando o menino disse: "tomara que fevereiro seja tão bom quando janeiro". Ah! Entrei na conversa neste ponto, pra saber o que houve de tão bom no mês que passou, e ele me disse que foi "a gente não ter compromisso, poder fazer o que quiser com o tempo". Delícia inquestionável, e sob esse ponto de vista fevereiro vai ser diferente, "eu sei, mãe, eu sei." Eram pouco mais de 8h, e tínhamos ainda inteirinha nossa última sexta-feira livre, sem compromisso, considerando o futuro próximo, e eu vi que isso era o melhor que esse dia poderia nos dar. Não dei ideia nenhuma, não sugeri isso nem aquilo, só expliquei que eu tinha alguns compromissos, uma reunião no começo da tarde, "preciso cuidar de umas coisas". "E a gente?" "Vocês fazem o que quiserem." Rodaram pela casa no começo, viram "Shaun, o carneiro", depois o Homem-aranha, criaram uma curta narrativa com bonecos em miniatura e, de repente, o menino começou a juntar caixas, copos de plástico, tinta, papel e cola. Foi pra varanda, nosso lugar oficial da tinta guache, e me explicou que já sabia o que ia fazer com esse dia sem compromisso: um carrinho de brinquedo. Ensaiou por conta dele, cortou torto, colou com cola demais, pediu à tia uma ajuda com as rodas e o acabamento da lataria, e me mostrou orgulhoso quando cheguei. Me disse que é o carro mais legal do mundo. 

Dia 48/52

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Eles adoram o restaurante que fica aqui pertinho de casa. É àquela comida simples e caprichada, temperinho caseiro, coisa boa pra dar pra criança, que recorremos quando nos enrolamos com a rotina em casa, quando não dá tempo de cozinhar o feijão, ou nos sábados de preguicinha. Na volta pra casa, com malas espalhadas pelo chão, geladeira vazia e uma fila sem precedentes na máquina de lavar, nosso destino não podia ser outro, e eles foram pela rua comemorando. A eles o que interessa não é exatamente a comida, que gostam também. Mas é que desenvolveram uma relação de afeto com o lugar e com as pessoas, o casal de donos, a moça sorridente que sempre traz um suquinho pra eles, a pia que permite que lavem as mãos sozinhos, a vizinhança que vira e mexe a gente encontra por ali. Há algum tempo descobriram que temos um cartão de fidelidade e desde então monitoram com o maior interesse os dias em que temos um almoço grátis, motivo de uma alegria pura, muito mais valiosa do que os reais que chegamos de fato a economizar. Hoje o pequetito foi o responsável pela contagem... monitorou o carimbo, conferiu quantos temos, quantos faltam e dividiu com quem quisesse ouvir seus planos prevendo quando e como vamos completar o cartão. Foi andando com ele na mão até em casa, dizendo, entre outras coisas, que foi bom viajar, mas que agora que a gente chegou, a gente já sabe onde tem comida boa... 

Dia 47/52

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Nosso dia de hoje começou ontem (ou será que o dia de ontem durou até hoje?) e eu vou te contar que cabem muito mais emoções em 20 horas de viagem com duas crianças do que se possa imaginar. É sempre uma surpresa, tem sempre algum pedaço tenso de um jeito que você não previu, e também tem alegrias que a gente não podia supor... Malonas, malinhas, mochila, casacos, “cadê a sua mochilinha, meu filho?”, greve de táxi em Madri, todas as alternativas saturadas, e no metrô tem aquela escadaria, mas é só a gente sair com tempo! No aeroporto são quilômetros de caminhada (por que, meu Deus?) e é nessa hora que o pequetito está “muito cansado”, não quer andar de jeito nenhum, mas se fosse pra ir ali comprar uma rosquinha, né? Sei... Antes de a gente tomar o rumo de casa precisamos fazer uma escala em Roma, e tem mais uma meia maratona com crianças, mas dessa vez fica mais bonito porque nas paredes tem foto de tudo o que vimos, e o menino vai reconhecendo um por um e termina sua lista com um “obrigado, mãe, adorei nossa viagem”. De nada, mas ainda temos quase 12 horas de avião, e dá tempo de explorar os filminhos, gargalhar gostoso com a piada do desenho que já vimos mil vezes, chorar porque tem que tomar remédio amargo, e chorar mais porque não gostou do jantar e não há nada que a mamãe possa fazer. Depois escovam os dentes, se enroscam um no outro e em cima da mãe e do pai e dormem impressionantes sete horas direto, absolutamente tortos, enquanto eu pelejo pra dormir 3 e acordo com dor no corpo, e a cabeça na estrada que ainda temos do Rio até em casa. Chegamos em tempo de almoçar arroz com feijão, (começar a) desfazer as malas, tirar um cochilo com ventilador no pé, e a noite é uma criança... 

Dia 46/52

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Ficamos duas semanas fora de casa, e pra que isso fique mais confortável pras crianças, combinamos que cada um poderia levar nas costas uma pequena coleção de afeto, um ou outro item pessoal que os faça se sentir bem. “O limite é o tamanho da mochila e o peso que você consegue carregar, certo?” Ambos escolheram, é claro, brinquedos - e, mais exatamente, Lego. Os bonequinhos e seus veículos incríveis estiveram com a gente por todos esses dias, ficavam nos esperando chegar dos passeios e faziam companhia na hora do lanche noturno, participando das brincadeiras, sempre cheias de novidade. Foi Lego também que quiseram levar de lembrança dessas férias (apesar de não ser uma lembrança nem tipicamente italiana, nem espanhola...), e agora podem acrescentar às suas coleções itens que vieram precisamente daquela tarde de frio, sol e gelato no centro histórico de Roma, e mais aqueles que descobrimos naquela loja enorme, perto da estação gigantesca que conhecemos em Madri.

Hoje, último dia desta pequena temporada fora de casa, fizeram um programa a três, pai, dois filhos, um programa surpresa, “olha ali, gente, olha aquele cartaz!”, pra ver mais um pouco do que seu brinquedo favorito pode fazer, numa exposição temporária que (será o acaso?), está aqui exatamente quando estamos. Me contaram depois que viram casa, castelos, uma catedral, prédios altíssimos, seis cidades inteiras feita de bloquinhos, e voltaram dizendo que não veem a hora de “mostrar nossa casa pros bonecos novos”. Agora, na jornada de volta, a mochila nas costas pesa um pouquinho mais, mas nem se compara com a bagagem que vão levando sem nem perceber...

Dia 45/52

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A gente mostra as imagens na tela do telefone, ou num folheto, se tiver, e conta a história, enfeita a narrativa com os elementos que a gente sabe que interessam a eles, e quando identificam no museu, quando colocam os olhos na obra propriamente dita, ali, a poucos metros do próprio nariz, apontam empolgados, se aproximam, nos puxam pela mão, “olha aqui, mãe; vem cá ver, pai”. Quase sempre dá certo. Miró (esse aí da foto) foi o primeiro que identificaram hoje no Reina Sofia, e depois viram Dali, Picasso, mais Miró, quadros, esculturas e umas instalações “muito doidas”. Foram se divertindo juntos diante da curiosa e valiosa oportunidade de ver arte moderna, coisa diferente pros olhinhos já acostumados a figuras mais construídas.

A cada sala que entrávamos enxergavam longe por conta deles, “é uma galinha com corpo de cobra ou uma cobra com cabeça de galinha?”, “mãaaae, uma montanha com nariz de porco!”, “olha, um gigante de 3 olhos e bumbum de mulher!” (Que não nos ouçam os críticos de arte, especialmente os mais sisudos...) Diante de Guernica, Picasso, 1937, umas das obras mais importantes do século passado, o pequetito me contou ao pé do ouvido uma história elaboradíssima, disse que era uma batalha entre o touro e o lobo, e que no fim venceram os dois, e morreram todas as pessoas, “elas ficaram jogadas ali sem cabeça”. Sei, pelo que li, que não era nem touro nem lobo, mas ele talvez não esteja tão errado assim... 

Dia 44/52

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Levantamos antes do sol nascer pra ver Toledo, e nos dividimos entre a beleza do lugar e o cansaço já acumulado após tantos dias de bate perna. Talvez os meninos tivessem reagido melhor, com mais entusiamo, se eu estivesse melhor, mas foi com essa realidade que precisamos lidar, andando pelas vielas medievais da cidade, visitando ruínas, arcos charmosos e praças pequeninas. Tem uma coisa linda em cada esquina, mas também tinha muito resmungo, muito vento e rompantes de mau humor, alguns justificáveis, outros desproporcionais, tudo junto e misturado. (E isso não quer dizer que não foi bom.) No fim do dia, descemos pra estação de trem e foi lá que descobrimos que confundimos o horário da nossa passagem de volta pra Madri, e a gente ia ter que esperar mais. O pequetito queria ir ao banheiro, tentamos usar o que tínhamos ali, “muito sujo, não senta, eu vou te ajudar”... Ele suou, chorou, não conseguiu, eu insisti, pedi calma, tirei casaco, cantei musiquinha, e ele chorou mais, desistiu. “Então vamos ali beber uma água?”

Quando chegamos em frente à vitrine do café, ele apontou pra aquela única rosca coberta de chocolate, riu meio sem vergonha, disse que queria, e eu pensei em todas as ruelas que ele andou, todas as vezes que pedi pra parar de reclamar, e disse sim, “ok, só vamos esperar o moço na nossa frente fazer o pedido dele”. Mas, entre tantas delícias, o pedido do moço - um senhor de cabeça branca, casacão de lã e olhos bem azuis - era exatamente a rosca. Eu avisei ao pequetito, “compro um muffin pra você”, mas ele caiu no choro imediatamente, chorou alto, molhou o rosto todo, e o moço, que falava espanhol mas entende a linguagem universal da criança, me estendeu o prato com a rosquinha e sorriu. Eu tentei negar, falei “não precisa”, ele disse 2 ou 3 vezes “por favor”, e eu agradeci demais. Sim, eu podia segurar a onda daquele choro, é claro que ele precisa aprender a lidar com a frustração, mas aquele homem que a gente nunca viu antes e nunca vamos ver de novo nos fez uma gentileza que nunca vamos esquecer. 

Dia 43/52

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Acontece de eu me distrair, andar um pouco mais rápido, ou diminuir o passo, parar pra ler uma placa, olhar pro outro lado, pra uma vitrine, pra um cantinho charmoso que acabo de descobrir, mas vira e mexe sinto aquele calorzinho dos dedos dele procurando os meus. Ele quer andar de mãos dadas. Já ganhou, por causa da idade e de uma eventual tranquilidade, o direito de andar por si só, “sempre aqui pertinho, por favor”, e ele até vai, mas não chega muito longe, sempre volta pra buscar companhia, porque quer contar alguma coisa, perguntar alguma coisa, fazer uma suposição ou imaginar em voz alta. Faz isso com o pai, com a avó, faria com outros amigos adultos se eles estivem aqui por perto, e faz demais comigo, todos os dias, muitas vezes a cada dia. Nós usamos esse tempo pra conversar, pra repercutir alguma coisa que acabamos de conhecer juntos, ou até pra lembrar das histórias que nos dão saudade, que nos enchem de planos. Também fazemos incontáveis e variadas declarações de amor.

Hoje caminhou dependurado no meu braço pelo Palácio Real, primeiro se queixou timidamente, depois reclamou demais de certas salas, “não acho prato e garfo bonito!”, depois foi se interessando pelas primeiras relações entre a Europa e a América, gostou de ver trono e coroa de verdade, e se encheu de curiosidade na sala das armaduras, imaginando a vida “daquelas pessoas naquela época”. Depois, enquanto a gente caminhava pela rua, me pegou pela mão de novo, ameaçou uma conversa nova, não deu, acabou voltando no mesmo tema e por fim repreendeu a si mesmo, “ai, mãe, tô sem assunto, mas eu gosto tanto de ficar assim com você”... Apertei mais um pouquinho a mão dele.

Dia 42/52

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Uma grande viagem se faz de cenários, climas e gostos especiais, é fato, mas nada disso faria sentido se não fossem as vivências que esses elementos nos proporcionam… Notei hoje, numa caminhada entre a estação do metrô e o lindíssimo Parque do Retiro, que meus meninos não somente brincam juntos, saudavelmente alheios à minha existência, como também conversam, batem papo. Vão gastando sola por nossos destinos compridos enquanto trocam uma ideia, debatem alguma coisa que viram, que querem ver, que ouviram alguém falar. Ouvi um papo que passava por “não foi isso que a mamãe quis dizer”, e, em outro momento, “era isso que eu estava te explicando aquela hora”... Senti um clima de experiência na fala do menino, muito vivido que é aos sete anos, e de curiosidade no pequetito, que se posiciona a todo fim de discurso, que pergunta, que concorda e discorda se sentindo parte do mundo. 

Quando chegamos ao parque, o assunto deles era a brincadeira que iriam desenvolver, quais seriam as regras, quem vai ser quem, e o que que está valendo. Não sairam correndo (neste momento), nem me esperaram pra saber pra onde iam… Foram caminhando devagar, lado a lado, reforçando ou reorganizando a dinâmica deles, tentando entender o que o outro dizia e que efeito isso teria no nosso dia. Depois, mais tarde, enquanto enfrentávamos fila pra conhecer o Museu do Prado, pra respirar mais um pouquinho dos ares da arte, pediram licença pra sentar ali no canto, na beirinha do canteiro e prometeram se comportar. “A gente só vai conversar…” 

Dia 41/52 - parte 2

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Eu agora vejo arte de rua de um jeito diferente. Isso é (mais uma) coisa que veio junto com a maternidade, veio da vontade de ver ou rever o mundo junto com eles. Antes eu tinha entrado na armadilha da pressa, ou me deixava levar pela distância, pelo hábito, pelo preconceito, “eu nem sei quem são essas pessoas, o que querem”... Não sei exatamente o que pensava. Mas eles, desde bebês observadores e risonhos, adoram ver gente diferente fazendo coisa diferente! Pode ser música, teatro, dança, estátua, mágica, graça! Nesses nossos dias de turista, já tinham deixado isso claro em Roma, morrendo de rir do rosto invisível do cara na avenida, imitando o Michael Jackson da praça, diminuindo o passo pra ouvir a música bonita da moça do metrô. Eles fazem questão de parar, e então paramos sempre que é possível.

Hoje vivemos um dia inteiro de rua, e um dia inteiro de emoções na rua! Eles param e querem ver não só o cara que faz as gigantes bolas de sabão, mas também a moça-estátua que fica pendurada no Predador, o garçom equilibrista que escorregou na casca de banana, a banda tocando uma música típica (opa! Acho que essa aí é típica do México, mas tá valendo), o homem cinza que parece que é um monumento na pedra, a senhora que toca violino ali na esquina. Descobriram que podem, e então querem, dar uma moedinha como sinal de que gostaram, e haja moedinha! Essa foto aí fizemos no meio da tarde, depois de um almoço meio polêmico, muito típico talvez, no Mercado São Miguel. Achamos a Porta do Sol e lá estava o famoso #ratonperez acompanhado, pelo visto, de sua turma toda… 🐀

Dia 41/52

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Madri nos trouxe sol! Dormimos tudo o que queríamos, saímos de casa ainda em marcha lenta, mas tudo o que precisamos fazer pra sentir Madri foi pisar na Plaza Mayor… Chegamos juntos, os dois de mãos dadas comigo, cada um no seu ritmo. O pequetito foi se soltando logo que avistou o cavalo, depois as bolhas de sabão, “vem, vem comigo, irmão”, e o menino ainda desconfiado, ainda tentando entender o que via. Mais de 200 sacadas nos cercavam nos lindíssimos prédios históricos, muito colorido, todos no mesmo tom, e ele ia concordando comigo que é bonito, lindo, “mas vai, filho, vai ver o que seu irmão quer te mostrar”. Saíram juntos, correndo, parando, correndo de novo, o cavalo, os prédios, aquela pintura bonita ali, o moço das bolas de sabão… Cercaram o cara, correram atrás das bolas e se divertiram muito, até que vieram me pedir uma moedinha, “vamos dar pra ele, mãe”! Sem planejar, receberam em troca o direito da bola gigante, aquela que de tão grande abraça dois meninos de uma vez só… Amaram! Se sentiram bem vindos, felizes e livres, e nesse clima andamos um tempão, descobrindo que é tudo pertinho, muitas praças, logo ali, tantos prédios harmônicos, tantas cenas lindas, tanta gente indo de um lado pro outro… Eu não quero me precipitar, mas amarelo parece ser mesmo a energia de Madri…

Dia 40/52

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Chegamos ao aeroporto quase na metade do dia, e depois que nos despedimos do direito garantido de almoçar pizza, perguntei pro menino qual é a cor de Roma. A gente já tinha feito esse exercício antes, em outras oportunidades, e eu vejo que o ajuda a elaborar um pouco mais sobre o lugar, a juntar informações, emoções, cheiros e sons. Nossa cidade tem uma cor, nossos passeios um monte de tons diferentes, e desta vez ele nem precisou pensar: “Roma é bege, meio alaranjado, meio acinzentado... tem uma cor que eu não consigo explicar”. Entendo perfeitamente... Eu quis saber se essa cor trazia junto com ela algum sentimento, mas ele me disse que isso é difícil de perceber, “eu só sei que fico com vontade de ver mais”. Na noite anterior, quando o trajeto do Tram nos deu de presente a chance de nos despedirmos de alguns dos prédios, igrejas e ruínas que fizeram nossos últimos sete dias tão atípicos, ele não desgrudou os olhos da janela, foi enxergando tudo o que podia ver. Já hoje, na longa caminhada que os aeroportos nos impõem, foi apontando pras fotos que via no caminho, chamando pelo nome aquilo que conhecia, tomando posse da bagagem que ele nem sabe que tem. Sentamos na sala de embarque, e eu perguntei: “e Madri? Que cor será que tem Madri?” 🤔 Amarelo é o palpite dele... 

Dia 39/52

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Não costuma aparecer nos guias, pelo menos não nos mais batidos, mas Roma tem um Museu da Criança, que também podemos entender como um museu de ciências. O nome oficial, que não podia ser mais adequado, é Explora. Depois de mais uma maratona (mais curta, desta vez) em torno da arte e das belezas que a cidade oferece assim, logo ali, naquela esquina, terminamos o dia com duas crianças felizes igual pinto no lixo, fazendo o que, no frigir dos ovos, criança deve fazer. Está lá a sugestão do museu pras famílias, um texto meio longo que pode ser resumido assim: deixa a criança brincar como quiser, quantas vezes quiser, na hora em que quiser. Não dirija a experiência dela, não faça escolhas por ela, não pense que você sabe exatamente do que ela gosta. Nada que ainda não nos tenham dito muitos especialistas na infância, mas não custa lembrar, e foi com a inspiração desta proposta renovada que entrei no lugar.

Eles começaram ainda do lado de fora, rindo de entusiasmo, querendo se jogar, mas com medo da novidade, sem nem notar o frio que anda se intensificando, e eu me segurei pra não colocar todo mundo pra dentro na mesma hora, “anda, senão não dá tempo de ver tudo”... Mas depois da tirolesa italiana, partiram pro museu propriamente dito, mal penduraram os casacos e já foram viver a vida, sem absolutamente nenhuma sequência, sem lógica alguma, sem me explicar pra onde iam. Eu já ia abrindo a boca pra dizer que deviam ver primeiro o que tem aqui embaixo, e eles já estavam no segundo piso, repetindo freneticamente algumas experiências, ignorando outras… Exploraram todo o espaço, primeiro juntos, depois separados, sempre usando a privacidade do português pra dividir as novidades com o irmão, “caraca, vem ver isso, olha que demais!” Depois de dias programada pra pedir calma, porque estamos no avião, num museu, numa igreja, etc, venci minha tentação de intervir. Ficamos até o último minuto, saíram leves pela rua escura e o menino agradeceu, “ai, mãe, foi demais!” “É mesmo? O que vocês fizeram de tão bom?” “A gente brincou, ué!” Como, aliás, fazem crianças felizes em qualquer canto desse mundo… 

Dia 38/52

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Há poucas semanas, estava conversando com uma conhecida sobre os nossos planos de férias, e ela me disse que iria, pela 3ª vez, pra Disney. A justificativa dela pra repetir o destino é o fato de que “é de lá que as crianças gostam. Elas não aproveitam cidades tipo Roma, Paris, Nova York, não adianta, isso é coisa pra adulto.” Obviamente que ela tem direito de ir quantas vezes quiser seja onde for, e eu não tenho nada contra ir à Disney - eu iria, aliás… Mas, com horas e mais horas de diversão em família acumuladas, me dou também o direito de discordar. Hoje acordamos cedo pra aproveitar o dia chuvoso dentro dos Museus do Vaticano, e as razões que tínhamos pra incluir as crianças passam pela oportunidade única de entrar em contato com algumas das obras de arte mais importantes da história, pela chance de abrir o olho, aprender sobre o mundo, e aprender sobre gente, ainda que isso venha eventualmente misturado com tédio e cansaço. 

Minha mãe já tinha dado uma grande contribuição lá no Brasil, na casa dela, quando incluiu na leitura noturna um livro antigo sobre a obra de Michelangelo, e explicou pros meninos que tinha uma parte desse trabalho que eles veriam em breve, na Capela Sistina. Estavam esperando por esse momento. O próprio museu acrescentou a isso um mapa com os “tesouros escondidos”, feito exatamente pra envolver as crianças em meio a tanta arte “para adultos”, e fazer com que cheguem motivadas à reta final. Foram seis horas de passeio, com uma longa parada pro almoço, com tempo pra fotografar gaivotas, pra conversar sobre as obras, pra posar com as estátuas e encontrar (quase) todos os tesouros. Sim, também teve tempo pra reclamações, pra frases dramáticas, pra um pedido repentino pra voltar pra casa, “eu quero jogar joguinho”, mas isso se resolve com um cochilo no colo da mamãe. O que vale é que, no fim, acharam Deus tocando o dedo de Adão no teto da capela (que não pode ser fotografada), fizeram festa pra cada um dos tesouros encontrados naqueles corredores seculares, e descobriram até o mistério maior: em que parte da pintura Michelangelo escondeu seu próprio rosto? 

Dia 37/52

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Saíram de casa, ainda no Brasil, muito interessados em ver a boca da verdade, a Bocca Della Verità, e não é por se tratar de alguma coisa muito grandiosa, mas sim porque temos ali uma boa história. Diz a lenda que a peça de mármore, meio assustadora, meio tristonha, redonda e com a boca aberta, come a mão dos mentirosos. Você vai lá, posa com a mão no buraco, e se não for afeito à verdade, nhac, ela come a sua mão. Quando chegamos, depois de uma corridinha livre, leve solta e meio molhada pelo Circo Maximo, tinha uma fila enorme, estava chovendo, e dava pra ver que nosso “big moment” duraria, no máximo, dois minutos. Não que não se possa ser muito feliz em dois minutos, e que isso não faça valer a pena, mas acaba sendo um desfecho demasiadamente curto pra tanta expectativa. A sorte foi que, como de costume, saímos de casa conversando sobre o que iríamos ver, e a boca me fez a gentileza de inspirar uma “lista de verdades” - as coisas que a gente vai pensar quando estiver lá, com a boca na botija, digo, com a mão na boca. O menino veio primeiro… Uma verdade sobre você: “eu sou especialista em Lego”. Especialista amador, mas sim, ok. Uma verdade sobre seu irmão: “ele brinca de tudo que eu gosto de brincar”. Nota-se. E uma verdade sobre o mundo: “no mundo não existe lado de cima ou lado de baixo, pode ser do jeito que a gente quiser”. Sem comentários. Agora, a vez do pequetito - sobre você: “eu adoro a minha família”. Puro amor! Sobre seu irmão: “ele desenha aranha muito bem”. É mesmo. E uma verdade sobre o mundo: “Roma é legal demais!” (Devo dizer que, feitos todos os cliques, saímos todos com as mãos inteirinhas…) 

Dia 36/52

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Este pode ficar conhecido como o dia em que fui salva por um trabalho conjunto entre Walt Disney e Michelangelo, e eu agradeço desde já... O que se passou foi que decidimos ir a Florença, e optamos por fazer isso logo cedo, cedo mesmo, pra pegar as passagens mais baratas e pra ter o dia inteiro pra rodar pela cidade que é indescritivelmente linda. Assim, tiramos os meninos da cama ainda de madrugada, preparamos todo o esquema e achamos que o negócio estava ganho, mas esquecemos de combinar com o pequetito. Ele dormiu no trem, com a carinha de anjo de sempre, e simplesmente não acordou. Chegamos, tomamos café, ofereci biscoito, suco, chocolate quente, e ele de olhos fechados, mole como se fossem 3h (quase eram, no fuso dele). Andamos naquele cenário de filme até a catedral, vimos o tom verde belíssimo das construçōes da cidade, paramos pra tirar foto e sorrir, e eu com o braço dormente, a coluna ardendo, 20kg entregues no meu colo. Pensei em alugar um carrinho (não dá!), pensei em sentar num banco (onde?), pensei em deixar pra lá e desistir do passeio (mas como assim?), até que tomei fôlego, demos mais uns passos e vimos uma loja da Disney. Ok, não foi isso que fomos fazer em Florença, eu faço questão de dizer, mas eu e meu marido tivemos a mesma ideia. Vamos? 

Ele abriu os olhos e ergueu a cabeça ainda na rua, quando eu disse que tinha “descoberto uma coisa”, e entrou andando na loja, apontando pra todo lado, segurando caixas, “mãe, olha só”! Se contentou em comprar um pijama, escolheu com muito gosto, e assim que pisamos na rua, me disse como se fossem 15h: cadê o David? O David está um pouco mais distante, pensei comigo, mas logo ali na frente tem uma cópia perfeita dele, quer ver? Pisamos na praça e ele saiu decidido, sacolinha em mãos, expulsando pombas, rápido e certeiro pra chegar perto do que ele aprendeu que era Michelangelo... Tirou fotos e mais fotos, chamou o irmão, o pai, a vó, “anda, vem ver”, e dali em diante não teve mais sono. Reclamou bem de tarde, cansado de tanto andar, mas combinamos de ir até o museu ver o que mais Michelangelo tinha deixado ali, e fomos devagar, de mãos dadas...

Dia 35/52

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Rodamos longamente pelas ruas do Centro Histórico de Roma, e também mais um pouquinho pra cá, e um cadinho mais pra lá... Fomos percorrendo vias apertadinhas, ruas movimentadas com vitrines cheias de nomes conhecidos, praças grandiosas, pequenas praças surpresa, fontes de água claríssima, chão de pedra, estátuas e mais estátuas. Paramos pra admirar tudo, pra tentar entender, pra comer pizza e tomar gelato, e também paramos pra ver brinquedos - uns lindos e delicados que a gente nunca viu, e outros velhos conhecidos, os que fazem a gente pular de alegria. 

No fim da tarde, chegamos na porta do Panteão, que, pra início de conversa, tem dois mil anos. Depois de já ter conquistado e perdido a atenção dos meninos por incontáveis vezes ao longo do dia, fiz mais uma investida, contei pra eles sobre a imensa cúpula (a maior de concreto não armado do mundo!), o “buraco no meio”, que deixa entrar o sol e a chuva e depois disse que ali, do lado esquerdo, debaixo daquela estátua de uma moça com um bebê no colo, está Rafael, Rafaello, aquele que pintou tantas coisas lindas aue a gente já viu. O pequetito me puxou pela mão, quis chegar perto, ficou olhando quieto e depois, bem depois, me disse que não entendia como Rafael estava ali e que estava triste. “Morreu que dia? Morreu por quê? Por que guardaram o corpo dele?” Respondi a todas as perguntas que ele tinha, fui tentando polir o estranhamento de leve, não dizer nem mais nem menos do que o que ele precisa, e por fim ele me pediu pra voltar lá, “eu quero ver de novo”. Foi por conta dele até perto do túmulo, não demorou, e voltou já andando em direção à porta (porta gigante!) dizendo “mãe, vamos, ainda bem que ele pintou tantas coisas”... 

Dia 34/52

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Já contei algumas vezes que eles brigam, e de vez em quando pode ser bastante dramático, mas alguma coisa acontece quando estamos nessas aventuras fora de casa que vivem em um surpreendente estado de paz. Passaram as últimas 24 horas sem uma rusga sequer - um com o outro, porque do resto do mundo reclamaram um pouco -, e muito pelo contrário. É como se se tornassem a casa um do outro, em função do tamanho da novidade que é o entorno - uma língua que a gente não entende, um cheiro que a gente não sabe do que é, placas que não nos dizem quase nada. Viram, por amor e circunstância, os mais excepcionais parceiros, uma referência forte e gostosa na rotina sem rotina do irmão. 


Eu dei algumas ideias, mas foram eles que construíram, ao longo do dia, as brincadeiras que deram fôlego pros passeios, e foi deles que vieram os mais suaves diálogos ao longo do nosso dia tão comprido. O pequetito reclama de andar, resmunga quando a gente estica o programa, e eu argumento como posso, dou colo enquanto posso, mas, no fim das contas, quem vira a chave dele, quem transforma a lamentação em risada, é sempre o irmão. Foi o irmão também que conseguiu cessar o choro que ressoou no museu depois que a lente da câmera bateu na testa do pequetito, e ele que mostrou que dava pra brincar de “chão é lava” nas pedras do Fórum Romano. O que eu sei é que não é mole colocar todo mundo na rua pra passear, mas eles me ajudam demais a chegar ao fim do dia...