Fernanda abriu os olhos

Lars Plougmann/Visualhunt

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Fernanda abriu os olhos, é sábado, dá pra sentir, e ficou deitada, sem saber as horas. Essa é a diferença dos fins de semana de agora, não precisar levantar correndo pra reunião matinal da empresa, e é desse prazer que ela vai viver hoje: não vai tirar o pijama. Pode ser que já sejam 9h, podem ser 8h, mas o mais provável é que ela tenha acordado antes das 7h, por puro hábito que a última década criou. A cama está mais espaçosa do que o normal, e quem está ali não é Michael, é Marina. À meia-luz que entra pela fresta da cortina, dá pra ver o cabelo dela, daquele castanho brilhante, cobrindo a maior parte do rosto, uma mechinha balançando devagar no ritmo da respiração forte que sopra aquele ar quente de menina, num leve assobio que Fernanda conhece bem. Que horas trocaram de cama? Eu nem vi. Ela estica a mão pra tirar o cabelo do rosto da menina, não resiste ao calor gostoso da bochecha dela, e torce pra ela continuar dormindo. Mamãe te ama.

Nas últimas semanas, a pressão do relógio tem sido tão grande, mesmo sem trânsito, sem escola, sem elevador, que parece até que ela nem encostou em Marina. Não estão acostumadas a passar tanto tempo juntas, e às vezes parece que mal se viram. Não é uma ironia? Entre a sala, o computador, a cozinha e o quarto de Marina são poucos metros, e ainda assim parece longe quando se tem cinco reuniões por dia, dois relatórios pra concluir, e um alfabeto pra conhecer. Marina está sendo alfabetizada. Outro dia, pela tela do computador, Fernanda viu que ela sabe escrever pato, e também mato, e também rato. Ali na tela vídeos cheios de cores e letras vão fazendo as vezes da professora, e trazem pra Fernanda mais uma mistura típica da maternidade, alguma coisa entre a alegria de ver acontecer e a culpa por não poder fazer acontecer como deveria. Criança precisa de escola de verdade, gente! E, se não tem, então, criança precisa de uma mãe que olhe pra ela, meu Deus, não pra esse monte de relatórios!

Marina nem sempre quer a escola, mas também nem sempre queria quando podia se despedir da mãe ali na porta de entrada e passar a tarde com os coleguinhas. Pode ser que ela cumpra toda a lista que se espera dela, sorrindo, ou pode ser que se recuse a olhar pra tela, e Fernanda já decidiu que tudo bem. Ora, por favor, ela tem 6 anos! Nesses dias longuíssimos de quarentena, tem sido difícil encerrar o expediente às 18h, como sempre, e jantar olhando nos olhos de Marina. Ela sempre tem mais alguma coisa pra fazer, a casa sempre está "uma bagunça impossível", e Marina sempre quer brincar mais um pouquinho.

Mas não agora, sábado, 7h ou 8h da manhã; Marina ainda não abriu os olhos. Veja só, que menina comprida! Fernanda pensa no monte de coisas que poderiam fazer juntas, parquinho, um passeio no shopping, cinema talvez, e aquela viagem pra casa da vovó! Mas não hoje, sábado, maio de 2020. Como passou tão rápido, como tudo isso aconteceu? Que dia essa menina cresceu? Marina mexe os braços, faz aquele barulhinho de preguiça com a boca e abre os olhinhos. Primeiro coça os cílios, depois estica os braços, segura a cabeça da mãe bem perto da cabeça dela.

- Eu fiz um sonho, mãe!
- É mesmo? Sonho bom?
- Sim. Conta pra mim!
- A gente tinha pão de queijo pro café.