Rosana não vai gritar

Nick Demou/StockSnap

Nick Demou/StockSnap

Já se somavam 57 dias e 57 noites quando Rosana pôs a sopa em cima da mesa. Linguiça tostadinha, alho, cebola, ervilha batida. Era um feito considerável, fotografava bem a sopa, e era novidade - não era frango com legumes, e nem misto quente, nem pizza com brócolis em cima pra disfarçar. Era sopa verdinha, cremosa, servida numa caneca divertida, com torradinhas cuidadosamente cortadas em motivos infantis.

- Não quero. 

Ninguém é obrigado a querer, obviamente. 

- Não quer por quê, meu filho? Experimenta!
- Eu não, cruz credo. 

Cruz credo doeu feito um beliscão escondido debaixo da mesa, gatilho certeiro pra aquela dor de tentar agradar e errar. A dor que ela conhece há três décadas. Não quero vá lá, mas cruz credo depois de um hora de cozinha, e outras 11 de cozinha/casa/máquina de lavar/homeschooling, desce feito arame farpado. Faz 12 horas que Rosana mal senta, porque depois que acordou foi cuidar do café das crianças, escovar dentes, tirar pijamas, computadores a postos, hora do almoço, já fez tudo? Preciso lavar a roupa, desinfetar a porta da rua, não, não podemos ir no parquinho, termina tudo o que você precisa fazer, anda, vamos pro banho, e não grita, não atrapalha o papai, ele precisa trabalhar. Mamãe não tem home office, então mamãe trabalha o dia inteiro. 

- Sente o cheiro, eu tenho certeza de que você vai gostar. 

Podia ter sido mais ríspida, podia fazer valer a sua voz. Entre os três segundos em que o menino terminou sua interjeição e ela abriu a boca, Rosana fez incontáveis conexões cerebrais, esticou o corpo inteiro na tentativa de se conter, fantasiou aquela sopa espalhada na mesa e no colo dele, e então optou por tentar mais uma vez. Você vai gostar. 

- Não! Por que você fez isso sem me perguntar? Eu falei que queria strogonoff.
- Nem todo dia é dia strogonoff, ué!
- Então eu vou embora! Sabia que criança pode ficar até 3 dias sem comer? 

E levantou da mesa o filho, munido aos dez anos de idade das caras e bocas que aprendeu na TV, batendo os pés e ameaçando dormir. Rosana podia entrar na onda, gritar de novo - gritou ontem e anteontem! - pedindo respeito e limite. Mas ao invés disso se perdeu ali sentada na mesa, pensando na delícia de mundo que é isso: ameaçar alguém dizendo que vai dormir. Queria ela poder encerrar questão, qualquer questão, ameaçando pijama e travesseiro antes das 23h… 

- Vai então, meu filho. Boa noite. 
- Heim? Eu não vou comer?
- Quer comer? Come! 
- O que?
- Sopa. 
- Não posso comer outra coisa?
- Não antes de experimentar a sopa. 
- Hoje é o pior dia da minha vida, sabia? 
- Que pena…
- Vou dormir de barriga roncando? 
- Se você quiser…
- Ai, não acredito! 

Sumiu pela porta do banheiro, foi escovar os dentes brancos de quem não comeu nada. Rosana cumpriu a tarefa típica do turno da noite, leitinho do bebê, historinha pra menina, mais um pouquinho de historinha, pijamas a postos, só que desta vez parou a cada 15 ou 20 minutos para retomar a conversa sobre a sopa e a necessidade de experimentar. E de ser razoável. Eu já te expliquei porquê. Às 21h30, finalmente dormiram a menina e o bebê, sempre um pouco depois do que devia, e então acabou. Rosana foi tomar banho, banho em silêncio, com gosto de vitória. Hoje eu não gritei. Banho em silêncio, com gosto de vitória e cheiro de sopa de ervilha. Ele não dormiu.

- Que cheiro é esse, meu filho?
- Esquentei, mãe. Está uma delícia.