Todas as palavras que eu quiser

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Já estava instalado o clima de fim de festa quando o menino trouxe pra casa o livro de Língua Portuguesa. Me contou orgulhoso que tinha terminado todas as atividades, e na manhã seguinte, enquanto arrumava o material da escola, ficou me rodeando, pedindo pra eu ver, "toma, mãe, olha o que eu fiz". Não era esse o meu plano naquela hora, mas achei que não devia negar atenção ao seu maior feito intelectual até o momento, e sentamos na cama pra voltarmos no tempo. Estava tudo lá, devidamente datado. 22 de fevereiro. Letra palito e um monte de símbolos. Era uma escola nova, gigante para os olhos de uma criança acostumada com a calorosa escolinha infantil, tinha até carteira (com livro!), e tocava o sino, e tinha dever de casa todos os dias. "Lembra, filho, o frio na barriga? Lembra do primeiro dia?" "Lembro", ele respondeu baixinho, pra depois acrescentar que já não tinha mais medo, que agora a escola é dele, "parece que sempre foi".

Fomos passando página por página. Em março completou o alfabeto, preencheu uma ficha com seus dados mais importantes - o nome, o endereço, o endereço da escola. Ainda ficava apegado aos amigos que vieram de outros carnavais, e evitava debater com a professora sobre o que não sabia, ou o que não concordava… ia falando somente quando tinha certeza. Depois vieram os quadrinhos, o nome de um monte de gente, as rimas e as primeiras frases. Quantas palavras se pode escrever a partir de uma só, e quantas emoções ele ainda ia viver naquele pátio enorme, no recreio que era bem mais curto do que ele queria? Maio e junho vieram cheios de histórias, de personagens fantásticos e uma lista de brincadeiras favoritas - a lista que não termina nunca! Ali já escrevia receita de bolo e interpretava textos, aqueles curtinhos, rimados, que ficam na memória a gente…

Depois das férias subiu mais rápido e mais firme as escadarias da escola, e mal olhava pra trás. "Que diferença, heim, meu filho?" Novos amigos, poesias impressas no livro, antônimos, palavras cruzadas, variações de gênero, e algumas frases completadas de pronto. "O que eu mais gosto na minha família é o amor, a gente quase não briga", escreveu na página 115, certamente inspirado por um dia de paz. Viramos a folha, e "olha, mãe, minhas primeiras palavras de cursiva", me mostrou com a mesma alegria daquele fim de tarde de setembro, quando ele me contou que a tia estava "mostrando todas as letras emendadas, iguais às que você faz...". Ainda era tudo grande, torto e fora da linha, mas depois de mais alguns quadrinhos, uma lista de comidas saudáveis e uma inserção no mundo animal, já dava pra ver a grafia que chega agora ao final do ano, como se fosse um passe de mágica, como se tivesse acordado um dia fazendo exatamente assim.

Passou voando, eu diria daqui, mas não é o que ele acha. "Eu acho que eu já estou pronto pro próximo ano", vai dizendo pra si mesmo enquanto procura um lugar na estante dos "livros que a gente vai guardar pra sempre". Agora vai ficar com saudade da escola, daquela sala onde ele constrói suas histórias, dos amigos com quem troca ideias e aprende tanto, da professora que escutou o que ele tinha a dizer, mesmo nas vezes em que ele insistia em falar demais. Fevereiro não demora, e a gente começa de novo, tudo igual, só que diferente, "porque agora, mãe, eu posso escrever todas as palavras que eu quiser".